Com quase 7.000m², o terreno foi, ao longo dos anos pelos próprios moradores, sendo cultivado um bosque denso, criando uma espécie de clareira central, preservada justamente para abrigar uma futura edificação. Esse gesto, ainda que intuitivo, já indicava um desejo de habitar o lugar de forma afetiva e integrada, respeitando o tempo e a presença da vegetação.
Essa condição nos levou a adotar um posicionamento de dissolução: a casa não se impõe sobre a paisagem — ela se infiltra nela, borrando as bordas entre o natural e o construído.
A casa como bacia receptora
Utilizamos a imagem de uma bacia como metáfora para essa proposta. A casa se comporta como um recipiente: coleta fluxos, recebe a vegetação, organiza as águas, abriga o cotidiano de forma fluida. O ponto de partida do projeto foi a criação de seis blocos independentes, cada um com uma função clara — dormitórios, sala, cozinha, lavanderia, vestiário, depósito.
Entre os blocos, estabelecemos um eixo longitudinal de circulação, conectando todos os volumes no sentido leste-oeste. Fizemos deslocamentos ortogonais entre eles, criando frestas — espaços de respiro, de luz, de ar, de paisagem. São nesses interstícios que a natureza reaparece, atravessa os cheios, transforma os vazios em pequenos jardins, e convida o olhar a nunca parar.
Fragmentação como estratégia
Essa fragmentação dos volumes não é gratuita. Cada bloco se posiciona com certa autonomia, e isso contribui para uma leitura porosa da casa: há sempre passagem, respiro, ambiguidade. A arquitetura não é uma peça única e contínua, mas uma colagem de presenças sutis, intercaladas pela paisagem.
O resultado lembra uma composição yin-yang, em que forças opostas — casa e bosque, cheio e vazio — se equilibram e se transformam mutuamente. A vegetação entra, a arquitetura sai. Há uma contaminação bilateral que faz com que a casa pertença ao lugar não apenas fisicamente, mas de maneira simbólica e sensível.
Cobertura leve, flutuante
Acima desses blocos repousa uma cobertura contínua, que se apoia suavemente sobre eles. É uma cobertura invertida, com calha central, pensada para conduzir as águas pluviais de maneira organizada — mas também para criar uma experiência sensorial única.
A água da chuva, ao escorrer pelas calhas e desaguar nas extremidades da casa, produz um som presente, quase meditativo. Em dias de chuva, os moradores relatam uma atmosfera transformada — o espaço ganha movimento, o olhar busca os pontos de escoamento, a casa escuta a água.
Essa cobertura não toca diretamente o solo: ela flutua, e essa leveza colabora para a ideia de que a casa não pesa sobre o terreno. Ao contrário, ela pousa, respeita, observa. E com isso, reforça-se o caráter não impositivo da arquitetura.
Um olhar que se abre para fora
Como a casa está implantada no centro do lote e cercada por vegetação densa, não há necessidade de blindagem. A proteção já está dada pelo próprio terreno, onde todas as janelas e portas se abrem para o bosque.
Essa liberdade permite que os ambientes tenham transparência total: das suítes à cozinha, tudo se abre para o exterior. Há uma confiança no entorno. A arquitetura se relaciona com ele de forma aberta, curiosa, gentil.
A calha como eixo e gesto
Apesar da escala generosa do terreno, decidimos manter a lógica da calha como elemento ordenador do projeto. Com quase um metro de largura, ela percorre todo o eixo longitudinal da casa, articulando os blocos e conduzindo a água da chuva até um pequeno lago artificial, idealizado pela própria cliente.
Essa calha é muito mais do que uma solução técnica. Ela é um gesto: organiza, conecta, conta uma história de fluxo. Permite a drenagem sem obstruções — uma preocupação essencial em terrenos arborizados, onde folhas e galhos facilmente causam entupimentos.
Além disso, a calha se torna uma presença estética. Em dias de chuva, ela desenha no espaço um ritual visível de passagem. A água ganha palco. O som vira matéria do projeto.
Programa e fluidez
A casa abriga, em seus seis blocos, três suítes (sendo uma com closet), cozinha, sala de estar e jantar, lavanderia, vestiário, depósito e área técnica. Não há uma entrada única: a casa pode ser acessada por múltiplos pontos, o que reforça a ideia de fluidez e de não hierarquia entre os ambientes.
A circulação principal conecta os blocos com portas de vidro em ambos os lados, permitindo atravessar visualmente os volumes. A luz, o ar e a paisagem estão sempre presentes. O interior e o exterior não competem: eles se completam.
Soluções construtivas simples, espaços sofisticados
A casa é de execução simples: alvenaria de blocos de concreto, laje painel, estrutura convencional. Mas isso não compromete a qualidade espacial — pelo contrário. Ao apostar em materiais básicos, a atenção se desloca para o que realmente importa: a luz que entra, o ar que circula, o verde que invade.
A casa não precisa de acabamentos sofisticados para ser encantadora. O lavabo, por exemplo, recebe um jardim interno. Um gesto singelo que transforma um ambiente utilitário em experiência sensorial.
Arquitetura como escuta
Esse projeto é, acima de tudo, uma resposta sensível ao lugar e às pessoas que o habitam. A solução da calha, que já havia sido testada em outro contexto, aqui ganha nova vida. A cobertura, embora semelhante em forma, produz outro tipo de relação com o entorno. E isso mostra que a arquitetura, quando feita com atenção, não se repete — ela se reinventa a partir do lugar.
Neste caso, mais do que edificar uma casa, tratava-se de escutar um terreno, um bosque, um tempo longo de espera. De escutar também os desejos dos moradores, que por anos observaram esse espaço vazio se preencher de vida.
O que fizemos, como arquitetos, foi amparar esse processo com cuidado e clareza. E, no final, entregar uma casa que não se impõe — mas que se oferece. Que não domina — mas que acolhe. Uma arquitetura que, ao invés de marcar presença, prefere se deixar contaminar.